Lúcifer é lúcido - Martha Medeiros, Jornal Zero Hora, domingo, 28/10/07.
"Lúcido deve ser parente de Lúcifer
a faculdade de ver deve ser do demônio
lucidez custa os olhos da cara".
Estou embriagada pelos novos poemas de Viviane Mosé.
Esta é só uma palhinha de Pensamento Chão, um livro
essencial nestes tempos em que já sabemos que não
convém circular de Rolex por aí, já sabemos que certos
políticos nunca ouviram falar em honra, já sabemos que
o verão vai ser sufocante e só nos resta olhar um pouco
para dentro de nós, o único lugar onde ainda encontramos
alguma novidade.
Essa visão inusitada que Viviane nos oferece sobre lucidez,
por exemplo, é um convite para a reflexão. Em tempos insa
nos, de tanta gente maluca por vaidade, maluca por juventude,
maluca por dinheiro, maluca por poder, os lúcidos destacam-se
pela raridade. São aqueles que não inventam personagens de si
mesmos, não se trapaceiam, não criam fantasias, ao contrário:
se comprometem com a verdade. E se envolver assim com a
transparência dos fatos requer uma integridade diabólica. Para
olhar o bicho nos olhos é preciso ser bicho também. Enfrentar a
verdade é quase um ato de selvageria.
Mas que verdade é essa, afinal? É aí que o demônio apresenta
sua conta, pois o lúcido tem que se confrontar com uma verdade
desestabilizadora: a de que não existe verdade absoluta. Nossos
pensamentos não estacionam, nossos desejos variam, o certo e o
errado flertam um com o outro, não há permanência, tudo é provisório
e buscar um porto seguro é antecipar o fim: a única segurança está
na morte, será ela nosso único endereço definitivo. Durante o percurso
da vida, tudo é movimento, surpresa e sorte.
O lúcido faz parte do time - cada vez mais desfalcado - dos que se
desesperam como todo mundo, porém de um modo mais íntimo e refinado.
O lúcido organiza sua loucura, acondiciona o que está solto no ar, interliga
várias idéias independentes para que, agarradas umas nas outras, não se
dispersem, estejam ao alcance da mente. Quanto mais o lúcido pensa,
mais percebe que lucidez plena não existe, o que existe são suposições,
algumas até coerentes, o que nos mantém no eixo. Lúcido é aquele que
sabe que lucidez é uma falácia, e não pira com isso. Recebe a conta das
mãos do demônio, calcula os ganhos e os prejuízos, e paga. Custa sim,
Viviane, os olhos da cara, esse vício de pensar e repensar, pensar e com
pensar, pensar, pensar, pensar e morrer do mesmo jeito. Por isso achei
tão interessante seu poema. Você matou a charada: Lúcifer é uma espécie
de padroeiro dos lúcidos - e lúcido é só um outro nome para louco. O louco
que tem a cabeça no lugar demais.
a faculdade de ver deve ser do demônio
lucidez custa os olhos da cara".
Estou embriagada pelos novos poemas de Viviane Mosé.
Esta é só uma palhinha de Pensamento Chão, um livro
essencial nestes tempos em que já sabemos que não
convém circular de Rolex por aí, já sabemos que certos
políticos nunca ouviram falar em honra, já sabemos que
o verão vai ser sufocante e só nos resta olhar um pouco
para dentro de nós, o único lugar onde ainda encontramos
alguma novidade.
Essa visão inusitada que Viviane nos oferece sobre lucidez,
por exemplo, é um convite para a reflexão. Em tempos insa
nos, de tanta gente maluca por vaidade, maluca por juventude,
maluca por dinheiro, maluca por poder, os lúcidos destacam-se
pela raridade. São aqueles que não inventam personagens de si
mesmos, não se trapaceiam, não criam fantasias, ao contrário:
se comprometem com a verdade. E se envolver assim com a
transparência dos fatos requer uma integridade diabólica. Para
olhar o bicho nos olhos é preciso ser bicho também. Enfrentar a
verdade é quase um ato de selvageria.
Mas que verdade é essa, afinal? É aí que o demônio apresenta
sua conta, pois o lúcido tem que se confrontar com uma verdade
desestabilizadora: a de que não existe verdade absoluta. Nossos
pensamentos não estacionam, nossos desejos variam, o certo e o
errado flertam um com o outro, não há permanência, tudo é provisório
e buscar um porto seguro é antecipar o fim: a única segurança está
na morte, será ela nosso único endereço definitivo. Durante o percurso
da vida, tudo é movimento, surpresa e sorte.
O lúcido faz parte do time - cada vez mais desfalcado - dos que se
desesperam como todo mundo, porém de um modo mais íntimo e refinado.
O lúcido organiza sua loucura, acondiciona o que está solto no ar, interliga
várias idéias independentes para que, agarradas umas nas outras, não se
dispersem, estejam ao alcance da mente. Quanto mais o lúcido pensa,
mais percebe que lucidez plena não existe, o que existe são suposições,
algumas até coerentes, o que nos mantém no eixo. Lúcido é aquele que
sabe que lucidez é uma falácia, e não pira com isso. Recebe a conta das
mãos do demônio, calcula os ganhos e os prejuízos, e paga. Custa sim,
Viviane, os olhos da cara, esse vício de pensar e repensar, pensar e com
pensar, pensar, pensar, pensar e morrer do mesmo jeito. Por isso achei
tão interessante seu poema. Você matou a charada: Lúcifer é uma espécie
de padroeiro dos lúcidos - e lúcido é só um outro nome para louco. O louco
que tem a cabeça no lugar demais.
(colaboração de TagianeCarrion)
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