Panelas da revolução
O portal UOL de hoje, 3/5, faz uma pergunta meio debochada sem se dar conta de que tratava de uma questão antropológica profunda: "Havana: pode uma panela de arroz elétrica ser revolucionária?"
Leio a matéria e confirmo minha desconfiança: não havia na matéria nada que tenha a ver com o título. Perdeu o UOL por não ir na veia da questão.
Mas serviu, ao menos, para lembrar-me da década de 70/80, no D.A. da Faculdade de Ciencias Econômicas da UFMG, quando fazíamos, de fato, reflexões sobre nosso quê-fazer para mudar o mundo. Não tínhamos nenhuma dúvida dos caminhos: a revolução, as rupturas epistemológicas ou as reformas. Claro, ficávamos sempre com a revolução. Outras vertentes queriam outras alternativas e, por fim, sempre aparecia um nova tendência no movimento estudantil e, evidentemente, sócia de alguma tendência maior: Partidão, Trotskista, chinesa, albanesa e por aí vai.
Discutíamos seriamente e por meses a fio cada alternativa.
Um assunto que foi motivo de nossas reflexões ocorreu durante a construção da Transamazônica, a mal parida estrada dos militares que ligaria a miséria seca à miséria molhada.
No meio da selva descobriram uma tribo indígena desconhecida, os Kamayurá. O contato com o homem branco acabou por introduzir no meio deles um novo valor antropológico que iria transformar profundamente sua vida e seu futuro e de muitas outras tribos adjacentes: a lata de banha vazia, do tipo dessas quadradas que hoje se usa para embalar tinta.
Grande, quadrada, resistente ao fogo, capaz de transporta 20 litros de água e, em muitos aspectos, melhor que as panelas de barro usadas pelos nativos. Sucede que naquela panela, naquele objeto de barro, havia muito mais do que sua função utilitária, estava ali, naquele objeto, enterrada, uma cultura milenar, uma estrutura sócio-econômica organizada, fluente e vigorosa. Cada panela produzida pela tribo era trocada por alimentos, roupas,utensílios, armas que eles não produziam mas que outras tribos próximas sim. Cada objeto de troca, por sua vez e por força de centenas de anos de história e cultura econômica, só era produzido por essas outras tribos. E fechava-se assim o virtuoso ciclo econômico e vital, cada um construindo uma parte da cultura.
Pedindo o perdão pelo pedantismo da expressão necessária, ruiu ali uma cultura na medida em que se retirou da panela de barro todo o seu estatuto ontológico, que foi transferido à lata de banha.
Na panela de barro havia uma cultura impregnada que ia muito além de sua singela forma e matéria prima. O objeto, ao sofrer a interferência da mão humana, deixou de ser coisa para ser paracoisa ou seja, cultura.
E não foi preciso muito tempo para que estas culturas se desfizessem: era comum índias serem vistas oferecendo seus corpos na beira da poeirenta Transamazônica em troca de uma lata de banha. E as panelas de barro viraram cacos a serem desenterrados por arqueólogos que dirão no futuro que um dia existiu uma tribo Kamayurá.
As panelas podem sim, ser revolucionárias.
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