A pedagogia e os lançamentos imobiliários em São Paulo
Devo ser uma pessoa de extremo mau gosto. Leio sempre o caderno de lançamentos imobiliários dos jornais de São Paulo, sendo que não vou comprar nada. Leio esses cadernos e me impressiono cada vez mais com os edificios de apartamentos e o que eles oferecem aos clientes: churrasqueira, espaço gourmet, garage band, piscina, boliche, quiosques, fitness center, casa de bonecas, salão de festas, cachoeiras, cinema, escritório virtual, jardins orientais, sala de yoga e meditação, jardins suspensos e apensos, TV a cabo, internet, quadras de tênis, minigolf... Não haveria melhor cenário para um samba-exaltação de Alcyr Pires Vermelho.
Nada, absolutamente, contra os confortos que o dinheiro pode compar no mundo capitalista, claro. Minha pergunta é pedagógica: essa gente não vai ao mundo? Trata-se de um clã, de um mandarinato, de uma tribo alienígena, de uma cidade proibida dos chineses? Para que diabos servem o mundo, as pessoas, a sociedade tão duramente moldada para dar aos cidadãos cada vez mais a noção de coletividade? Isso me intriga.
Isso me lembra as discussões que fazíamos em Minas, com a liberdade de pensar e agir que o governo de Tancredo Neves deu aos operadores de sua política social, grupo ao qual tive a alegria de pertencer.
Ao discutirmos as novas políticas sociais dirigidas às crianças e adolescentes, nossa maior preocupação era exatamente desmontar as instituiçoes herdadas do mundo que morria, desde a República Velha, passando pelo Estado Novo e finalmente pelo assistencialismo dos anos 70. Nossa palavra-chave era incompletude. Precisávamos criar instituições incompletas. Em poucas palavras, eu explico.
Na República Velha os problemas sociais eram tratados como casos de polícia. Os pobres, os divergentes, os diferentes eram marginais, nasceram assim e precisavam ser confinados, isolados do mundo. A sociedade queria-os bem longe. Eram perigosos. Nasce a instituição correcional-repressiva para dar conta "dessa gente".
No Estado Novo a lógica era a igualdade para todos os marginalizados. Eram tratados como soldadinhos de chumbo. Eram todos iguais entre si, mas diferentes do resto da sociedade. Avançou em relação à abordagem anterior, mas pecou por não colocar, ainda, a sociedade como centro do problema. O mundo caminhava bem. O problema eram os indivíduos. Não era mais tão repressiva mas era correcional. Foi a época do surgimento so SAM, o maldito Serviço de Assistência ao Menor.
No período da ditadura militar houve um avanço significativo. Os assistentes sociais foram reconhecidos como profissionais e assim criou-se uma rede assistencial. Foi banido o SAM e criaram-se as FEBEMs nos Estados e a Funabem, no nivel federal.
Mesmo apresentando avanços em relação às abordagens anteriores, o equívoco foi desastroso.
Os pobres não eram mais todos iguais, nem bandidos. Eram carentes. E, como carentes, credores do Estado. A engenharia social foi simples mas devastadora e se baseava numa premissa absurda: se um cidadão é carente e esta carência produziu em sua biografia e na sua folha corrida um desastre social, basta corrigir. Se ele se marginalizou por não ter o suporte do Estado, vamos devolver-lhe este suporte sob a forma de reposição. Ao devolvermos o que o Estado lhe negara, vamos fazer dele, hoje, o que ele teria sido se tivesse tido esse suporte. Nada mais linear e equivocado. Qualquer primeiranista de psicologia sabe que a experiência humana ocorre também na vertical, no aprofundamento, nas complexas relações interiores. A visão assistencialista quis passar uma borracha no passado e inscrever ali um futuro.
Sem ter abolido totalmente as abordagens passadas, o novo modelo assistencialista, à primeira vista, erra em tudo.
Para construir esse novo mundo o que o Estado fez, manu militari, foi criar instituições completas, fechadas sob si mesmas, sob a batuta de assistentes sociais. Confinou-se o pobre em instituições fechadas ao mundo mas internamente restituidas das expropriações sociais. Ali dentro havia tudo, como nos modernos prédios de São Paulo. Inclusive escola!! Tudo mesmo. Uma criança "carente" nascia, crescia e muitas vezes morria sem saber que a 100 metros havia um mundo funcionando. Um mundo do qual ele não fazia parte.
Se nossa tarefa era, portanto, desmontar essas estruturas perversas, tornando-as incompletas, transformando-as em apenas um local generoso e digno para se comer e dormir, como qualquer casa, banindo de vez a lógica das FEBEMs e nisso fomos bem-sucedidos, chamamos a isso ressocialização. No mundo e não nas instituições é que suas necessidades teriam que ser resolvidas.
Curiosamente vemos nos lançamentos imobiliários de São Paulo esta nova forma de isolamento perverso, que poderíamos chamar de dessocialização. Afinal, os ricos também não merecem o mundo?
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