Niemeyer: ''O ser humano não representa nada. Essa idéia de importância é tão ridícula, esse negócio de achar que venceu na vida...Isso é uma merda"
Um mito vivo - embora ele ache o título uma grande besteira - que se mostra humano, frágil, perplexo com o mundo em que vivemos e conformado com a finitude, inclusive de sua obra. Esse é um paradoxo só aparente. Na manhã da última terça-feira, o arquiteto Oscar Niemeyer, 99 anos, abriu sua casa-escritório na cobertura do velho Edifício Ypiranga, na Avenida Atlântica, em Copacabana, para fazer um inventário da estupidez humana.
Uma de suas angústias é a violência brasileira, fruto, segundo ele, das enormes desigualdades sociais do país. Por isso, quando fala em futuro, não pensa em novas obras. ''Gostaria de olhar para a cidade e não ver favelas, não ver pobre na rua, olhar o povo satisfeito correndo na praia'', revela o crítico do modelo de self made man, importado da cultura americana. ''O sujeito quer ser o vencedor. Isso é uma merda!'', desanca.
Niemeyer conversou com o Correio no lugar onde passa mais tempo, com incursões até o cavalete no corredor onde, sempre de pé, rabisca seus traços tão simples quanto geniais. Um dos projetos mais recentes é o monumento a Simon Bolívar com 100 metros de altura, que foi entregue ao presidente venezuelano Hugo Chávez. ''Ele é um sujeito simpático, competente, patriota...'', aponta Niemeyer, que vê novos ventos soprando sobre a América Latina em oposição ao poder do presidente americano George W. Bush, que ele chama de ''terrorista número um'' do mundo.
''Os países estão se transformando em repúblicas populares, de mãos dadas contra os americanos. Essa onda do Bush acabou'', decreta. Niemeyer acha que Lula poderia, inclusive, aproveitar o novo encontro com o presidente americano, no final do mês, para marcar posição. ''Ele devia dizer que é brasileiro e que vai continuar defendendo o Brasil da pressão norte-americana'', sugere.
O apartamento na Atlântica é grande, mas não tem nada que possa ser caracterizado como luxuoso. É branco do piso às paredes, com espaços vazios, preenchidos por mesas, cadeiras e estantes empilhadas de projetos, maquetes e muitos livros, de autores como Jorge Amado, Dias Gomes, Hélio Silva e Fernando Morais.
Na entrada, uma foto antiga da igrejinha da Pampulha, projeto seu em Belo Horizonte, e, numa parede próxima, um retrato de Luiz Carlos Prestes, ainda jovem. Niemeyer, que não quer ouvir falar em homenagem no ano de seu centenário, diz que sua vida passou voando. ''É um minuto...A gente nasce e morre. Cada um dá sua historinha e vai embora. Eu deixo a minha historinha também'', diz. E que história!
O senhor diz que a arquitetura não é importante, o importante é o homem. Que é preciso um homem mais humilde e solidário. O senhor acha que a arquitetura de hoje é o reflexo do homem moderno, egoísta e vaidoso?
Incomoda ao senhor a reverência exagerada, a veneração, ou, no bom português, o puxa-saquismo?
O senhor já escreveu que tudo na vida é precário e ilusório e que, diante do tempo, tudo vai ser esquecido. Até as suas obras?
Uma vez eu estava aqui no escritório com alguns estudantes, uma delas perguntou para outra: ''Você já leu Eça de Queiroz?'. A outra respondeu: ''É filho da Raquel de Queiroz?''. É uma merda, né. Estamos criando agora um Instituto de Arquitetura e Humanidades em Niterói e a finalidade é melhorar o nível das pessoas. Além de arquitetura, o curso abrange conferências sobre filosofia, história... Depois de dois meses, o aluno sairá diferente.
O senhor acha importante que o arquiteto conheça os problemas sociais da cidade onde atua?
Aqui, como nos Estados Unidos, o sujeito quer ser o vencedor, quer dinheiro. É pensar pequeno demais. Temos que crescer, viver com simplicidade, com os filhos, ter amizade pelas pessoas. O importante não é o sujeito ver as pessoas procurando adivinhar os defeitos, mas admitindo que todo mundo tem um lado bom. O Lênin dizia que 10% de qualidades já eram o suficiente.
Citando Lênin, ele certa vez disse que ''nossa estética é nossa ética''. O senhor acha que as desigualdades sociais provocam a violência?
O Brasil é um país racista?
A gente tem que saber que o ser humano não representa nada, é desprezível, não tem tarefa nenhuma aqui, não tem perspectiva, mas tem que viver. E a maneira de viver é de mãos dadas, num clima de boa vontade, ter prazer em ser útil.
(O arquiteto João Batista Vilanova) Artigas dizia que a felicidade de um povo se mede pela beleza de suas cidades. Como o senhor vê a arquitetura no Brasil hoje?
Com o desenvolvimento das cidades, a arquitetura perdeu poder para as construtoras, para a especulação imobiliária?
Em Brasília, as pessoas com mais poder aquisitivo, ficam no Plano Piloto. As demais, mesmo trabalhando em Brasília, acabam morando mais longe... É claro que as cidades-satélites não deveriam existir. E, como a pobreza é maior, sua densidade demográfica é hoje superior à do Plano Piloto. Uma cidade dividida entre pobres e ricos.
Brasília ainda é uma obra inacabada?
Qual foi sua última viagem a Brasília?
Hoje quando o senhor vai a Brasília, como se sente? Em casa?
O carioca tem muitas restrições em relação a Brasília... Brasília foi um momento de otimismo, de coragem...uma aventura. O objetivo era bom, levar o progresso para o interior. Foi um momento de otimismo do povo brasileiro.
O senhor diria que as curvas da mulher são sua principal fonte de inspiração?
Às vezes faço um projeto sem pegar no lápis e, quando sento na prancheta, já tenho uma idéia. Outras vezes não, é desenhando que a solução aparece. Minha preocupação na arquitetura é reduzir os apoios, as colunas, e quando isso ocorre a arquitetura parece mais audaciosa. Eu procuro que ela crie espantos, crie surpresas, que a pessoa, ao ver um prédio meu, tenha a sensação de que não viu nada parecido.
Sua convicção comunista nunca foi abalada, levando em conta os rumos do mundo contemporâneo?
O comunismo não é uma utopia?
Queria falar sobre o presidente cubano Fidel Castro... Ele aproveitou a oportunidade e tirou Cuba do poder dos americanos, que faziam do país o seu quintal.
Cuba deve continuar sob o domínio da família Castro?
Quando fica difícil a revolução, aparece não raro um militar, porque eles foram criados com a pátria dentro do peito - com exceções, é lógico. Chávez é um sujeito simpático, competente, patriota...
Ele pode ser o sucessor de Fidel como líder de esquerda na América Latina?
O que o senhor acha da posição do presidente Lula?
O presidente americano esteve agora em São Paulo... Eu protestei (em cerimônia na Academia Brasileira de Letras).
...e volta a se encontrar com o Lula no final do mês. O que o senhor gostaria que ele dissesse a Bush?
O senhor gosta do governo do Lula?
O senhor acha que o Lula é de esquerda?
O senhor viverá esse ano um certo dilema. Assumidamente não gosta de homenagens, comendas, mas muita gente no país quer lembrar o seu centenário. Como vai conviver com isso?
Não é todo mundo que faz 100 anos. Falta de assunto... O senhor disse recentemente: ''A vida é muito curta. Não dá tempo de fazer tudo''. É tão rápido assim?
O ser humano não tem sentido. Por isso eu digo: o sujeito tem que se informar. Não é para ficar mais iluminado não, mas poder sentir os mistérios do universo e de sua própria vida, discutir de onde tudo isso apareceu, procurar discutir as hipóteses.
O senhor tem algum grande projeto que queira realizar?
Se daqui a 100 anos, alguém falar em Oscar Niemeyer, como o senhor gostaria de ser lembrado?