Quem somos nós, uma questão permanente.
Uma pergunta que persegue, esmaga, mobiliza e encoraja a humanidade é, há séculos, a mesma: quem somos nós?
Desde o momento que nosso polegar se afastou e se opôs aos demais dedos da mão, há alguns milhares de anos, e permitiu que empunhássemos uma ferramenta, nossa boca com dentes poderosos deixou de ser nossa principal arma. Nossos músculos faciais se tornaram flácidos, nosso cérebro se libertou da prisão que o travava numa ossatura miúda da caixa craniana e se expandiu para novas funções e novas descobertas. Ao mesmo tempo que, aí, todas as nossas potencialidades se viram livres para desabrochar, ocorreu algo curiosíssimo: nossas maõs, agora armadas da capacidade de transformar e trabalhar a natureza ao redor, passaram a fazer parte do nosso cérebro na tarefa incansável de mudar tudo à nossa volta. A novidade era pensar ( tarefa deste novo cérebro expandido ) e, ao pensar, fazer. Nos libertamos da escravidão da natureza e nos tornamos um ser novo, sem igual na evolução. Um ser transcendente e principalmente subjetivo.
Com este salto, tudo aquilo que o cérebro passou a elaborar e a mão realizar se tornou trabalho humano, cultura.
Sobre este tema todo o conhecimento humano tem se debruçado. As mais importantes teorias filosóficas que se desenvolveram nesta linha, mais ou menos com esta lógica fundamental, foram as mais libertadoras e emancipadoras, como a Teoria da Evolução de Darwin, a Teoria da Relatividade de Einstein, a Psicanálise de Freud e o Materialismo Histórico e Dialético de Marx e Engels.
Uma ciência biológica até então reservada aos círculos herméticos dos cientistas tem ganho um fenomenal espaço no conhecimento popular, em vista da repercussão de seus avanços na vida cotidiana. E, como não poderia deixar de ser, se entrelaça num profundo e desconcertante emaranhado filosófico. Esta ciência é a genética. Longe dos microscópios e dos laboratórios cheirando química, a genética galopa em direção à construção de um novo saber, de uma nova epistemologia, talvez ainda sem nome, e se emaranha com a psicologia, com a sociologia e, como não poderia deixar de ser, com nossa dúvida essencial: o que somos, de que somos feitos?
O escritor e professor Bill Bryson, em seu excelente livro "Uma breve história de quase tudo" (Cia. das Letras, 2006) afirma, entre outras maravilhas, que se fosse possível com uma pinça retirar uma a uma todas as moléculas do nosso corpo e ir colocando-as sobre uma mesa, ao fim do processo o que teríamos seria um montinho de umas dezenas de elementos químicos comuns, que poderiam ser comprados em qualquer farmácia da esquina.
O geneticista mineiro professor Sérgio Danilo Pena (autor do livro "À flor da pele", Editora Vieira & Lent, RJ/2007) tem se especializado de forma brilhante em nos dar respostas simples para estes assuntos complexos.
Articulista da revista Ciência Hoje, Pena publica a coluna Deriva Genética, com assuntos extremamente interessantes.
A publicação deste mês, intitulada "Afinal de contas, quem é você?" , que reproduzimos a seguir, trata exatamente deste assunto.
Quem quiser ler mais artigos do geneticista, pode ir no site da revista Ciência Hoje, clicando aqui.
Afinal de contas, quem é você?
Poderia o genoma trazer a resposta para um problema filosófico milenar? Sergio Pena responde.
Sócrates ( circa 470 a.C.–399 a.C.), o grande filósofo grego da Antigüidade, acreditava que “não vale a pena viver uma vida não examinada”. Será? Não haveria a possibilidade de alguém querer examinar demais a própria vida e acabar se enrolando intelectualmente no processo? E seria nossa vida tão excitante e especial assim que deva ser minuciosamente investigada? Lembro-me aqui de um ironista, cujo nome me foge à memória, que afirmou: “Não valeu a pena examinar uma vida examinada”.
Continuidade física do “eu” – Nosso corpo sofre mudanças enormes de tamanho e proporção ao longo do tempo e, mesmo assim, continuamos a ser “os mesmos”. Também na Grécia antiga, no pórtico do Oráculo de Delfos, estava gravado na pedra: “Conhece-te a ti mesmo”. A este respeito, ocorre um probleminha que talvez você, leitor, nunca tenha parado para analisar. Exatamente quem é você? Em que sentido você tem permanecido a mesma pessoa durante toda a sua vida? Uma possível resposta de sua parte seria: “eu sou meu corpo”. Mas seu corpo hoje é com certeza totalmente diferente daquele da sua infância e você ainda continua a se considerar “você”. Como explicar a continuidade do “eu” físico se tudo muda o tempo todo? O pensador grego Plutarco (45-125?) já filosofava sobre esse problema, usando como modelo o navio do herói grego Teseu, que foi preservado após a sua morte. Ao longo do tempo a madeira foi apodrecendo e as tábuas foram sendo substituídas até que não sobrou nenhuma das originais. A questão é: a estrutura com nova madeira ainda é o “navio de Teseu”? Essa charada continuou a ser debatida apaixonadamente muito após Plutarco. Por exemplo, o filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704) aplicou um raciocínio análogo a um furo que apareceu em sua meia preferida. Será que a meia manteria sua identidade após remendada? E seria ainda a mesma após todo o tecido original ser substituído por remendos? Continuidade física e psicológica Na tentativa de se esquivar desses paradoxos e como uma alternativa à continuidade física, você pode querer optar pela continuidade psicológica e argumentar “eu sou minha mente”, o conjunto de minhas experiências e memórias. Mas se você desenvolver uma amnésia ou doença de Alzheimer, deixará de ser você? Para complicar, a maioria dos filósofos e neurobiólogos concorda hoje que a mente não existe como uma entidade separada do corpo (mais especificamente do cérebro).
A pintura icônica A persistência da memória , feita em 1931 pelo surrealista catalão Salvador Dalí (1904-1989), representa a passagem (e a relatividade) do tempo usando as famosas imagens dos “relógios moles”. Pense bem: se você trocar o cérebro de uma pessoa pelo de outra, você fez um transplante de cérebro ou um transplante de corpo? Uma de minhas revistas prediletas, Philosophy Now , dedicou seu número de julho/agosto ao problema da persistência da identidade pessoal no contínuo espaço-tempo. Achei que esse seria um bom tópico para a coluna deste mês, inclusive por ser relacionado com o fato, discutido no artigo do mês passado , de que 90% das células do nosso corpo são bactérias e conseqüentemente não são propriamente parte integral de "nós". Ou são? De qualquer maneira vou invadir a praia dos filósofos, metendo meu bedelho neste quebra-cabeça milenar. Faço-o com certa trepidação e desde já convido o leitor a debater minhas idéias. Como porções do mundo externo se tornam “nós” Vale a pena lembrar que iniciamos nossa vida após a fertilização como uma célula única com uma massa de aproximadamente 1 nanograma, mas ao nascer já temos cerca de 3 quilos (um aumento de massa de um trilhão de vezes!). De onde vem todo esse material? Ele vem do ambiente, é lógico, via nossas mães. Durante o processo gestacional, nosso genoma fornece a informação necessária para rearranjar as moléculas elementares providas pela nutrição materna e transformá-las em nós mesmos. Após nascer, continuamos a crescer, apropriando mais massa do mundo exterior para o nosso corpo (desta vez por meio da nossa própria nutrição), sempre de acordo com os ditames organizacionais do DNA no nosso genoma.
Capa do fascículo de julho/agosto de 2007 da revista Philosophy Now , dedicado a discutir a persistência da identidade pessoal ao longo do tempo. A revista inglesa discute questões filosóficas de maneira simples e accessível, sem abrir mão do rigor acadêmico. Mesmo após chegarmos à vida adulta o processo não pára. O professor Michael Allen Fox, da Queen’s University, no Canadá, apresenta na Philosophy Now dados, baseados em estudos de carbono-14, do tempo gasto para alguns tecidos do nosso corpo serem substituídos. O epitélio de nosso intestino é renovado a cada poucos dias; a pele, a cada duas semanas; as células vermelhas do sangue, a cada 120 dias; e os ossos, a cada 10 anos. Por outro lado, o sistema nervoso central, incluindo o nosso precioso córtex cerebral, não se regenera. Mas certamente os átomos que constituem o cérebro mudam completamente com o tempo. De qualquer maneira, tudo mantém uma organização que, em última análise, emerge do nosso genoma. Será, então, que encontramos a chave do mistério? Poderia ser que solucionamos o problema milenar da filosofia se adotarmos o genoma como a fonte da nossa continuidade individual? Infelizmente acho que não, pois há uma série de objeções. Por exemplo, gêmeos idênticos têm genomas idênticos e ainda assim são pessoas bem diferentes. Eles diferem na sucessão de ambientes que experimentaram (suas histórias de vida). O ambiente torna-se, assim, um co-determinante crítico de nossa identidade. Adicionalmente, como discutimos em uma coluna anterior , o próprio genoma pode ser modificado epigeneticamente por influência do ambiente. O duo dinâmico: genoma e cérebro Theodosius Dobzhansky (1900-1975), nascido na Ucrânia, foi um dos grandes evolucionistas do século 20 e um dos alicerces do neodarwinismo (“nova síntese”). Como é bem sabido, ele teve várias passagens pela USP na década de 1940, influenciando indelevelmente a evolução de toda a genética brasileira. Um livro dele de 1970 – Genética do processo evolucionário – que li, ainda estudante, condicionou fortemente minha formação intelectual. Mais importante ainda foi seu excelente opúsculo de 1956, que tem o lindo título de The biological basis of human freedom (‘As bases biológicas da liberdade humana’). Foi ali que aprendi com Dobzhansky que o meu fenótipo (quem sou, incluindo meu corpo, meu intelecto, minhas emoções e minhas memórias) é a cada momento determinado pelo meu genótipo e pelas minhas experiências de vida. O meu genótipo está fisicamente armazenado no meu genoma. Por outro lado, a minha história de vida (a sucessão de ambientes, lato sensu , por que passei durante minha existência) está registrada epigeneticamente no meu genoma e também no meu corpo e nos arranjos sinápticos do meu cérebro. Em analogia com o contínuo espaço-tempo de Einstein, arrisco a sugerir que o locus da identidade pessoal humana é o contínuo genótipo-ambiente.
Fecho aqui com um poema de um dos “eus” de Fernando Pessoa (a persona de Álvaro de Campos):
“Eu... Tive um passado?
Sem dúvida... Tenho um presente?
Sem dúvida... Terei um futuro?
Sem dúvida... A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu... Eu sou eu, Eu fico eu, Eu...”
Sérgio Danilo Pena- Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia Universidade Federal de Minas Gerais