Fuga de cérebros, trabalho escravo e pobreza
Recebi da Dra. Mariana Morais Cajaiba, MD, brasileira que mora em New Haven, nos Estados Unidos, a matéria abaixo, que saiu na Folha de São Paulo. Ela pede minha opinião.
O assunto me fez lembrar uma discussão que tive com um amigo. Estávamos numa loja de fast-food e ele me acusou de ser um sujeito mal-educado, incivilizado, porque me recusei a levar o resto da minha comida, copos e guardanapos, com as minhas próprias mãos, na bandeja, para um lixo onde se lia "obrigado". Na verdade deveria ser "thank you". Como era meu amigo, dei-lhe minha explicação: isso era uma maroteira, uma maneira de fazer com que nós mesmos fizéssemos o trabalho cuja remuneração já estava embutida no preço do sanduíche. Aí a conversa foi ficando mais longa.
Perguntei-lhe qual o sentido de nós, consumidores, ocuparmos-nos desta função, que deveria ser de um trabalhador, num país de desempregados? "Se querem que fique limpo, que contratem um desempregado", resmunguei.
Nos países desenvolvidos, com alto grau de especialização e conhecimento, não há mais mão-de-obra de "segunda categoria". Lá, para se pagar um profissional local para fazer este trabalho sujo o sanduíche ficaria tão caro que o inviabilizaria; ou você faz uma parte do serviço ou não come por um preço razoável. Uma solução encontrada foi a importação de mão-de-obra de países pobres, onde há gente que se submete a ganhar qualquer merreca pelo serviço.
Quando as fast-food vieram para o Brasil, elas espalharam essa lorota de que limpar seus próprios restos era chic, educado e civilizado. Pfff. O conto do vigário foi tão bem aplicado que até hoje, 30 anos depois, ainda há gente que faça isso sem se dar conta de que está tomando o lugar de um desempregado, sendo explorado e fazendo papel de trouxa.
Na minha opinião, a tal "fuga de cérebros" a que se refere a matéria, nada mais é que uma versão atualizada da antiga importação de mão-de-obra suja para limpar mesa de fast-food. Onde lemos cérebros, devemos ler sub-cérebros, ou seja uma sub mão-de-obra focada nos "processos", que é a periferia das decisões. O filé mignon cerebral no mundo corporativo é o "negócio", o objetivo final. Os países desenvolvidos- que Dra. Mariana não se iluda- não estão na vida para importar talentos de qualquer outro lugar que não sejam das suas próprias universidades. Enquanto estes países se voltam cada vez mais para a geração e produção de soluções e conhecimentos nas suas universidades, o piano tem que ser carregado por alguém. O mundo corporativo, hoje, se resume em "processo", que á atividade-meio, e o "negócio", que é a atividade fim, a alma do negócio, as altas decisões.
A matéria da Folha é enganosa, embora arrumadinha.
Vejam os bancos: os antigos escriturários, caixas, contadores, práticos do ramo e que realmente tocavam o funcionamento de um banco, foram substituídos por uma horda de mauricinhos e patricinhas com MBAs, sub-pagos, envelopados e empanados em terninhos e tailleurs, fazendo as funções do antigo office-boy: pegar um papel aqui, carimbar ali. Decisão? Nenhuma. São funções de "processo", não de "negócio", ou seja, subalternas.
Fora dos países centrais, o que a Folha chama de "cérebro em fuga" nada mais é que o antigo catador de lixo do MacDonalds.
Com a proliferação dos cursos superiores no Brasil e no mundo e cada vez de nivel mais vergonhoso, o novo lixeiro de McDonalds tem MBA e tudo mais, mas continua sendo aqui, no EUA ou em qualquer lugar do mundo, um reles catador de lixo do MacDonalds.
Com raras e honrosas excessões, que poderiamos chamar quase de aberrações, nossos cérebros vão para o exterior carregar o piano.
MATÉRIA DA FOLHA
País perde cada vez mais "cérebros" para o exterior
ANTÔNIO GOIS
ANTÔNIO GOIS
da Folha de S.Paulo, no Rio
DENYSE GODOY da Folha de S.Paulo, em Nova York
Atraídos pela escassez de mão-de-obra qualificada, brasileiros com alto nível de instrução estão, cada vez mais, migrando para Europa e América do Norte. O fenômeno, chamado de fuga de cérebros, fica claro na análise de dois dados:
1) De 1996 a 2006, o número de brasileiros que receberam visto dos Estados Unidos dado somente a profissionais de alta qualificação aumentou 185%. 2) De 1990 a 2000, quase dobrou -de 1,7% para 3,3%-- a proporção de brasileiros com nível superior vivendo nos 30 países da OCDE, que reúne, na maioria, nações ricas de Europa, Ásia e América do Norte.
O Brasil não é o único afetado pela tendência. É a Índia o país com maior número de vistos dos EUA para trabalhadores qualificados, mas são nações de pequeno porte --como Guiana, Jamaica ou Haiti- que têm proporção de população com nível superior vivendo em outros países superior a 80%.
Mesmo assim, o aumento da fuga de cérebros do Brasil preocupa e muda o perfil do emigrante. Franklin Goza, professor da Universidade Estadual de Bowling Green (Ohio) que estuda a imigração brasileira para os EUA, afirma que ela está em transição.
"Nos anos 80, a vasta maioria de brasileiros que vinha para cá entrava ilegalmente, tinha baixa qualificação ou eram profissionais que chegavam como turistas, mas acabavam estendendo a estadia e trabalhando sem permissão em empregos não condizentes com sua formação, como professores lavando prato em restaurantes."
Hoje, no entanto, ele define a migração brasileira para lá como bi-modal. O fluxo de ilegais ainda é grande --no ano passado, os brasileiros perderam apenas para os mexicanos entre os que foram apreendidos na fronteira-, mas cresceu significativamente o número de profissionais em situação legal.
No Brasil, os efeitos também já são identificáveis. Para o demógrafo Eduardo Rios-Neto, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, o principal problema é a escassez de recursos humanos de alta qualidade no Brasil e no mundo.
"O Brasil fornece talentos para esse mercado global. O ponto é saber se é benéfico ou deletério. Se o trabalhador tiver estudado numa universidade pública, é deletério, pois foi o Estado que subsidiou sua educação. Mas, se a tendência é inexorável, há que se desenhar arranjos institucionais, como retornos periódicos e transferências de tecnologia, para minimizar as perdas."
O demógrafo, no entanto, enxerga oportunidades: "Há risco de longo prazo de que a classe média seja insuficiente para prover toda a demanda por qualificação do país. Com isso, pela primeira vez a elite empresarial terá de investir na educação popular como prioridade e devido a interesse econômico, e não por altruísmo."
Atraídos pela escassez de mão-de-obra qualificada, brasileiros com alto nível de instrução estão, cada vez mais, migrando para Europa e América do Norte. O fenômeno, chamado de fuga de cérebros, fica claro na análise de dois dados:
1) De 1996 a 2006, o número de brasileiros que receberam visto dos Estados Unidos dado somente a profissionais de alta qualificação aumentou 185%. 2) De 1990 a 2000, quase dobrou -de 1,7% para 3,3%-- a proporção de brasileiros com nível superior vivendo nos 30 países da OCDE, que reúne, na maioria, nações ricas de Europa, Ásia e América do Norte.
O Brasil não é o único afetado pela tendência. É a Índia o país com maior número de vistos dos EUA para trabalhadores qualificados, mas são nações de pequeno porte --como Guiana, Jamaica ou Haiti- que têm proporção de população com nível superior vivendo em outros países superior a 80%.
Mesmo assim, o aumento da fuga de cérebros do Brasil preocupa e muda o perfil do emigrante. Franklin Goza, professor da Universidade Estadual de Bowling Green (Ohio) que estuda a imigração brasileira para os EUA, afirma que ela está em transição.
"Nos anos 80, a vasta maioria de brasileiros que vinha para cá entrava ilegalmente, tinha baixa qualificação ou eram profissionais que chegavam como turistas, mas acabavam estendendo a estadia e trabalhando sem permissão em empregos não condizentes com sua formação, como professores lavando prato em restaurantes."
Hoje, no entanto, ele define a migração brasileira para lá como bi-modal. O fluxo de ilegais ainda é grande --no ano passado, os brasileiros perderam apenas para os mexicanos entre os que foram apreendidos na fronteira-, mas cresceu significativamente o número de profissionais em situação legal.
No Brasil, os efeitos também já são identificáveis. Para o demógrafo Eduardo Rios-Neto, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, o principal problema é a escassez de recursos humanos de alta qualidade no Brasil e no mundo.
"O Brasil fornece talentos para esse mercado global. O ponto é saber se é benéfico ou deletério. Se o trabalhador tiver estudado numa universidade pública, é deletério, pois foi o Estado que subsidiou sua educação. Mas, se a tendência é inexorável, há que se desenhar arranjos institucionais, como retornos periódicos e transferências de tecnologia, para minimizar as perdas."
O demógrafo, no entanto, enxerga oportunidades: "Há risco de longo prazo de que a classe média seja insuficiente para prover toda a demanda por qualificação do país. Com isso, pela primeira vez a elite empresarial terá de investir na educação popular como prioridade e devido a interesse econômico, e não por altruísmo."